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As teorias da bioética: Principialismo

Já apresentamos aqui o significado de bioética e o contexto no qual ela surgiu, questões que foram tratadas ainda com mais atenção no primeiro episódio do nosso podcast. Mas o desenvolvimento dessa relação entre ética e ciência não poderia parar em “conhecimento sobre como usar o conhecimento.” E, não por acaso, o texto de Potter não tem a intenção de exaurir essas reflexões; é mais uma provocação, um manifesto para que nós pensemos sobre a necessidade de desenhar novos sistemas de valores frente a desafios presentes e futuros, para que o futuro da humanidade não seja um desastre (e por isso, “ponte para o futuro” e “ciência da sobrevivência”).

Como maneira de encarar isso, diversos atores que habitavam justamente essa encruzilhada entre valores e ciência se voltaram ao desenvolvimento de teorias de bioética. Essas teorias muitas vezes divergiam não só nos valores que adotavam como mais importantes, como no próprio contexto em que poderiam ser aplicadas: algumas são verdadeiras metodologias de solução de dilemas do dia-a-dia clínico ou no desenvolvimento de políticas públicas de saúde, enquanto outras se debruçam sobre a definição de bioética e a descrição das diversas formas culturais da bioética. E este artigo dá início a uma série de postagens sobre essas formas de pensar a bioética.

Feita a apresentação, nada mais justo que começar com a teoria de bioética mais famosa e praticada. O principialismo é, sem dúvida, a teoria mais ensinada nos cursos de profissões de saúde e aplicada na atividade clínica e nas discussões de ética em pesquisa. Caracteriza-se por definir quatro princípios que devem guiar o profissional em situações de conflito ético: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. Cada um desses princípios possui valor idêntico aos demais, e a decisão correta é aquela que os preserva o máximo o possível. Assim, não se deve privilegiar um deles sobre os demais.

Mas antes de detalharmos cada um desses princípios, é importante entender como, quando e por que o principalismo surgiu.

Principialismo: Antecedentes

Entre 1932 e 1972, os Estados Unidos viveram uma das maiores vergonhas da história da pesquisa clínica: o chamado Experimento Tuskegee. É sempre válido reconhecer que em grande parte do século XX ainda não havia muitos mecanismos de controle sobre as pesquisas científicas, e foi um século permeado de crueldades nesse meio, inclusive no Brasil. Mas Tuskegee marcou os EUA pelo dano deliberado à saúde de inocentes, pela cumplicidade de muitos no mundo científico e pelo racismo.

O Experimento Tuskegee tinha como objetivo estudar os efeitos prolongados da sífilis no ser humano. Para isso, dividiu cerca de 600 afro-americanos em dois grupos: um deles seria o grupo de controle, e os sujeitos de pesquisa receberiam tratamento contra a sífilis; no outro, os sujeitos de pesquisa seriam deixados à própria sorte, ficando à mercê de apenas medicamentos sem efeito, os placebos. O experimento durou quarenta anos e a saúde do grupo placebo deteriorou-se bastante do período, levando inclusive à morte de muitos dos sujeitos de pesquisa.

Se de um lado vários membros da comunidade científica protestaram contra o experimento e criticaram sua crueldade, do outro muitos foram coniventes com ele. Tuskegee rendeu várias publicações científicas e muito prestígio para seus supervisores ao longo de sua duração. Muitos se perguntam se o estudo teria sido interrompido, não fosse a exposição na mídia e a revolta da população.

Sendo assim, podemos dizer que o Experimento Tuskegee é o responsável pelo surgimento da ética em pesquisa, ou mesmo do principialismo?

Na verdade, o episódio é apenas um dentre vários escândalos da pesquisa clínica com seres humanos que marcaram o século XX. A reação aos abusos da atividade científica foi uma preocupação de grande parte do pós-guerra do século XX. Ela remonta aos julgamentos do Tribunal de Nurembergue, um tribunal de exceção formado em 1946 para julgar crimes ocorridos durante os horrores do nazifascismo — dentre os quais se incluíam experimentos terríveis feitos com prisioneiros dos campos de concentração.

Tribunal de Nurembergue, onde ocorreram os julgamentos. Fonte: Office of the U.S. Chief of Counsel for the Prosecution of Axis Criminality,

Os esforços internacionais se repetiram em 1964, quando uma conferência da Associação Médica Mundial publicou a Declaração de Helsinque, documento que determinava princípios básicos para a realização de pesquisas com seres humanos. Por acaso, o documento vedava uma prática central em Tuskegee: o uso de placebo a fim de deixar que a saúde de um sujeito de pesquisa piore deliberadamente. Depois disso, já conta com cinco emendas publicadas até então. Assim, observou-se pouco a pouco a consolidação de uma espécie de mínimo ético no contexto da pesquisa.

Principialismo: Origem e Consolidação

Esse tipo de cenário já ilustra como as contingências na origem desse sistema de pensar a bioética moldaram o principialismo. Nos anos de 1978 e 1979, vemos a publicação do Relatório Belmont e do livro Princípios de Ética Biomédica [Principles of Biomedical Ethics], de Tom L. Beauchamp e James F. Childress, textos que serão a base para o principialismo.

O Relatório Belmont, publicado em 1978 pela Comissão Nacional para a Proteção de Seres Humanos de Pesquisa Biomédica e Comportamental dos Estados Unidos, partiu de diversos episódios grotescos da história da pesquisa em seres humanos (com destaque para o Experimento Tuskegee) para formular requisitos ético-morais básicos para a condução de pesquisa clínica. Esses requisitos se traduziam em três princípios:

  • Respeito pelas pessoas [Respect for persons]: tratar as pessoas como agentes autônomos, os quais devem ser devidamente informados a respeito das condições do experimento e que devem consentir para participar da pesquisa, e proteger as pessoas cuja autonomia é prejudicada, como crianças e aqueles afligidos por condições psíquicas.
  • Beneficência: minimizar riscos em potencial, não adotando riscos desnecessários, e maximizar os benefícios para os participantes.
  • Justiça: alocar riscos e benefícios de forma justa.

A publicação de Beauchamp e Childress, praticamente contemporânea ao relatório, também adotou como objetivo propor princípios éticos para a realização de pesquisas em seres humanos, expandindo-os entretanto para a atuação de profissionais de saúde em geral. São eles:

  • Autonomia: respeito pela autonomia dos indivíduos, que devem ser vistos como um fim em si mesmo e não como meio. Isso implica no direito desses indivíduos de ser livre no que tange a fazer escolhas sobre o próprio corpo. Por isso, o consentimento informado* ou a proteção de pessoas que não podem escolher por si mesmas é indispensável.
  • Beneficência: obrigação moral de contribuir para o bem-estar do paciente, agindo ativamente para seu benefício.
  • Não-Maleficência: não fazer mal. Evitar ou minimizar o dano causado a pacientes.
  • Justiça: distribuição de recursos, riscos e benefícios de forma justa e equitativa.

Em ambas as teses esses princípios são tidos como de igual valor: a autonomia não é superior à beneficência, que, por sua vez, não é superior à justiça.

As semelhanças são claras.​†​ Mera coincidência? Não há provas da participação de Beauchamp ou Childress na redação do Relatório Belmont. Fato é que o período viu intensas discussões sobre a ética em pesquisa, o que localiza ambos os textos em um certo contexto histórico.

A partir desses dois documentos, viu-se a emergência de uma verdadeira metodologia para a atuação ética de profissionais de saúde e cientistas. O Principialismo, como é conhecido, recorre aos princípios autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça para a tomada de decisões do profissional ou instituição.

Um pensamento pragmático e eclético

A partir desse breve escorço histórico, podemos apontar algumas características do principialismo. De partida podemos dizer que o principialismo é pragmático por excelência. É evidente que seu objetivo é equipar o profissional com esses princípios mencionados acima para resolver os dilemas da suas atividades cotidianas. Apesar de elencar princípios importantes, a teoria está mais preocupada em oferecer soluções satisfatórias do que “legislar” em bioética.

Isso leva à segunda característica da teoria: o ecletismo. O principialismo é eclético porque para assimila ideias de diversas correntes filosóficas, sem adotar qualquer uma dessas correntes completamente.

Como exemplo, observamos isso nos próprios princípios da teoria. O primeiro princípio — autonomia — defende que é indispensável respeitar a capacidade de um indivíduo de tomar decisões a respeito do próprio corpo, e que as pessoas devem ser vistas como um fim em si mesmo (e não como meio). A autonomia se origina na chamada deontologia kantiana, uma corrente ética cujas principais características são: (i) respeitar a capacidade das pessoas em tomar decisões de relevância ética: (ii) agir como se o valor guiando sua ação devesse ser uma lei válida para todas as situações possíveis, o chamado imperativo categórico; encarar as pessoas como “sujeitos éticos” sempre como um fim em si mesmo, e nunca utilizá-las como mera ferramenta para atingir outro objetivo.

Por outro lado, o princípio da beneficência remonta ao utilitarismo. O princípio da beneficência dispõe que as escolhas devem produzir o máximo possível de bem-estar ao paciente. Por sua vez, para o utilitarismo as decisões devem maximizar a utilidade — o nome dado a um bem que varia entre teorias (p. ex. prazer, desenvolvimento de capacidades individuais, bem-estar) — e o juízo ética recai sobre a capacidade de determinada conduta de produzir utilidade.

Quando adotamos esses princípios individualmente, nem sempre eles produzirão o mesmo resultado. Vamos supor que uma mulher está grávida de um bebê sem esperanças de vida, por causa de uma má-formação fatal. O bebê provavelmente nascerá morto ou terá poucos minutos de vida. À parte o aspecto econômico, podemos prever que seguir com a gravidez adiante trará um imenso sofrimento para a mãe e para o bebê, caso ele nasça com vida, e que com base no princípio da beneficência devemos interromper a gravidez. Além disso, que a mãe deve ser autônoma para decidir sobre o próprio corpo e tem o direito de interromper a gestação. Contudo, também podemos afirmar que isso está em desacordo com o princípio da não-maleficência, pois seria fazer mal ao bebê, roubando-lhe a vida e privando-o de sua oportunidade de viver mesmo que por um breve período. Se a teoria diz que todos os princípios têm igual valor, como decidir?

São situações como essa que demonstram ao mesmo tempo as deficiências e o mérito do principialismo. A teoria condensa alguns dos valores sociais (e profissionais) mais consolidados do mundo contemporâneo para dar uma direção a cientistas e profissionais de saúde. Isso torna-a uma teoria versátil e fácil de entender tanto para leigos quanto profissionais. Mas esse ecletismo pode levar muitas vezes a respostas contraditórias ou incoerências tanto internas (dentro de um caso específico de aplicação) quanto externas (entre casos distintos).

Heranças do principialismo

Universidade de Georgetown, em Washington/DC, EUA

O principialismo foi sem dúvida a corrente mais influente em toda a bioética até hoje, seja pelas inúmeras entidades públicas e privadas que internalizaram o principialismo nas tomadas de decisões ou por servir como ponto de partida para revisões e críticas ao modelo. Assim, sua grande inovação esteja em consolidar a autonomia e o consentimento informado como questões que devem ocupar o centro das relações entre sujeito de pesquisa e pesquisador, médico e paciente, dentre princípios já consagrados.

Portanto, não surpreende que também tenha sido assimilado nas políticas públicas de saúde. É o caso do Sistema CEP/CONEP, instituído através da Resolução nº 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde a fim de monitorar pesquisas realizadas com seres humanos. Um dos pilares do sistema é a participação da sociedade civil nas ações dos Comitês de Ética em Pesquisa – CEP e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP, e o outro, a avaliação dos projetos de pesquisa com base nos referenciais do principialismo (autonomia, beneficência, não maleficência e justiça).

Afirmar que o principalismo é a melhor maneira de compreender a bioética, ou que é sinônimo de bioética, é associar a praticidade e a adesão da corrente com uma espécie de hegemonia teórica. Mas estamos muito longe disso: diversas correntes surgiram em resposta às limitações do principialismo, vindo a se tornar também majoritárias em suas respectivas áreas. Fato é que para entender a bioética, sua aplicação nas instituições e a história do “conhecimento sobre como usar o conhecimento”, entender o principialismo é indispensável.


  1. ​*​
    Consentimento informado: situação em que o indivíduo consente com determinado tratamento, procedimento, ou participação em pesquisa, enquanto consciente de sua natureza e implicações para a própria saúde.
  2. ​†​
    Os princípios de “respeito pelas pessoas” e “autonomia” são quase idênticos. O mesmo pode-se dizer de “justiça” em ambas as propostas. A “beneficência” do Relatório Belmont foi desmembrada em “beneficência” e “não-maleficência” no livro de Beauchamp e Childress. Esse “novo” princípio remonta a um dos enunciados do Juramento de Hipócrates: “não fazer mal”. O Juramento de Hipócrates é um dos documentos de ética profissional mais antigos da história, remontando ao século V a.C., e até hoje ocupa as formaturas de estudantes de medicina em sua versão original ou em uma das variações modernas. São valores que integram a identidade do profissional de saúde como um todo, após tantos séculos de história e influência.

Advogado formado na Faculdade de Direito da USP, desde sempre nutriu um profundo interesse pelos dilemas em que a ética, o direito e a ciência se encontram. No tempo livre gosta de ler, caminhar, e fingir que toca violão.

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